terça-feira, 24 de julho de 2012

Affonso Romano de Sant'Anna: poesia atemporal e vanguardismo.




Venho falar a repeito de um grande poeta brasileiro que não é de grande conhecimento público, nunca foi tema de vestibular ou teve um de seus poemas musicalizados, porém possui uma vasta obra fantástica e atemporal, um poeta que trata do tempo de maneira realista e crítica, características que lhe concederam diversos prêmios literários nacionais.

Affonso Romano de Sant'Anna é um dos poetas que durante os anos 60 participou dos
movimentos de vanguardas que deram uma “nova cara” às artes, neste caso a poesia, com esse movimento houve a ruptura das correntes poéticas já amadurecidas (arcadismo, barroco, romantismo, simbolismo, etc.), o que fez com que a poesia criasse uma nova linguagem e trajetória. Foi taxado como um neoliberal e participou ativamente dos movimentos políticos e sociais que marcaram o Brasil durante este período.

CARTA AOS MORTOS é um dos meus preferidos poemas de Affonso Romano, publicado no livro
“O Lado Esquerdo do Meu Peito" (1991 - Rocco/RJ), trata sobre a imutável condição do mundo, a ilusão do progresso e a velha estupidez que sempre assolou a humanidade.

Acredito que inexplicavelmente, o inevitável sentimento de impotência paira sobre a alma de quem ler este excelente poema escrito em 1991, pode-se dizer que a questão social, resultado de uma política corrupta é a inspiração para tais versos, vale ressaltar que é uma das abordagens mais comuns de sua obra.

Segue ele na íntegra e logo após uma breve análise de alguns versos.

CARTA AOS MORTOS
Amigos, nada mudou
em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
As guerras não terminaram
E há vírus novos e terríveis,
Embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
Tomba morto por questões de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
E como sempre, mulheres portentosas
Nos seduzem com suas bocas e pernas,
Mas em matéria de amor
Não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
Seis meses ou mais, testando a engrenagem
E a solidão.
Em olimpíada há recordes previstos
E nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
Com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
Relemos o Quixote, e a primavera
Chega pontualmente cada ano.
Alguns hábitos, rios e florestas
Se perderam
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
Ou toma a fresca da tarde,
Mas temos máquinas velocíssimas
Que nos dispensam de pensar.
Sobre o desaparecimento dos dinossauros
E a formação das galáxias
Não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
Países se dividem
E as formigas e abelhas continuam
Fiéis ao seu trabalho.
Nada mudou em essência.
Cantamos parabéns nas festas,
Discutimos futebol na esquina
Morremos em estúpidos desastres
E volta e meia
Um de nós olha o céu quando estrelado
Com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
Continua a achar
Que vive no ápice da história


“Amigos, nada mudou/ em essência”.

Os versos iniciais podem resumir todo o sentimento de frustração com o mundo que Affonso deseja expor neste poema, os tempos mudaram, mudaram-se a arquiteturas, as modas e o mundo tornou-se veloz...

Devido sua frustração com a política nacional vigente em tal período, entende-se que estes versos retratem uma sociedade que vive a margem, sempre sob o domínio da burguesia, seja durante um governo absolutista ou republicano. Porém ainda há toda a
prevalência do imutável que pode ser entendido como a condição humana e seus costumes, esta condição que está claramente visível nos versos “mas em matéria de amor/ não inventamos nenhuma posição nova”.

“Alguns cosmonautas ficam no espaço/ seis meses ou mais, testando a engrenagem/ e a
solidão.”


A ciência progride, resultado da intensa capacidade humana de buscar o conhecimento que lhe dará a oportunidade de conhecer novos caminhos. O que dizer do astronauta aposentado e López-Alegría, de 53 anos, recordista por possui 257 dias fora de órbita, em 10 viagens realizadas.

Alcançamos o espaço, conhecemos as galáxias, mas em troca temos a solidão, a nossa única companheira, sendo ela um dos resultados deste avanço.

“Mas nenhum pássaro mudou seu canto/ com a modernidade.”


Falando biologicamente houve mudanças sim... São mudanças que resultam em subespécies,
Mas não vem ao caso...

“Ninguém mais coloca cadeiras na calçada/ ou toma a fresca da tarde.”

Temos hoje uma sociedade assolada pelo medo constante, a violência tem voz e impõe suas
ações no nosso cotidiano. Não mais teremos aquele clima bucólico de décadas atrás de estar na porta de casa com a família e conhecer quem vive ao redor. Estamos mais enclausurados a cada dia e quase impossibilitados da capacidade de conviver com o próximo.

“e volta e meia/ um de nós olha o céu quando estrelado/ com o mesmo pasmo das cavernas/ e cada geração, insolente/ continua a achar/ que vive no ápice da história.”

Por mais que a modernidade avance, e como diria Mario Faustino “A vanguarda do não avança e vence”, ainda contemplamos o comum, contemplamos o que de mais simples que acontece todos os dias. Por que será que quando o ambiente urbano veloz nos cansa temos o anseio pelo clima bucólico? Por que frente a tantas distrações ainda há a contemplação do por do sol? E como é resaltado no poema, a contemplação do céu estrelado.

Temos tudo o que criamos em mãos, avançamos em matéria de ciência, mas ainda admiramos o comum com o pasmo ancestral entranhado nas veias.

Para quem tiver interesse em conhecer mais sobre Affonso Romano de Sant’Anna pode acessar o Seu blog, segue o link:

http://affonsoromano.com.br/blog


Por: Madlene Nunes

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